Ecos da Gralheira em época de Natal
Os bons Vizinhos
Guilherme e Maria formavam um casal com cinco filhos de tenra idade; três rapazes e duas raparigas. Ele, almocreve de profissão, ela, vendedeira de produtos diversos, pão, ovos, manteiga, etc. A zona de acção de ambos ia da Régua a Cabril e de Mosteirô a Castro Daire, além de outras paragens. A mulher, de canastra à cabeça e o homem, carregando as mercadorias no dorso das mulas.
Estávamos nos primeiros anos da década de 1930. Tempos difíceis para as famílias pobres, como a do almocreve Guilherme. A sua habitação era composta por duas casas toscas, de granito mal alinhado, onde o vento e o frio não pediam licença para entrar. A separá-las uma estreita rua de lajedo, a que chamavam as fragas. De um lado, ficava a sala, no primeiro andar, onde dormiam alguns membros da família. No rés-do-chão acomodavam-se as mulas, com feno na manjedoura. Do outro lado da rua, era a cozinha, sem divisões, mobilada com duas camas, uma caixa, uma mesa de descer sobre a lareira, um louceiro (armário para louça), o caneco da água e pouco mais.
Encostada a uma das paredes, do lado sul, ficava a casa do casal Pedro e Ludovina, ainda jovens, com dois filhos menores, um rapaz e uma rapariga. Nessa parede havia um buraco por cima da lareira, por onde comunicavam, quando tinham necessidade de falar, buraco que, depois, tapavam com um farrapo. A sua pobreza era semelhante à do casal Guilherme, embora com profissão diferente, já que trabalhavam na lavoura. Esta profissão permitia-lhes estar sempre mais perto dos filhos, enquanto os vizinhos, chegavam a casa muitas vezes de noite, deixando-os entregues ao destino da sorte. Durante o dia, entretinham-se na brincadeira com os demais, mas, chegada a noite, quando as sombras envolviam em trevas a sua pobre casita, sentiam medo, encolhiam-se na cama como raposinhos órfãos na sua toca, sem conseguirem sequer acender a candeia, por falta de fósforos. Mal começavam a chorar, logo acorria em seu auxílio a tia Ludovina ou a tia Inésia, também vizinha, munidas de uma carqueja, com brasas em cima, para lhes acender a lareira e também a candeia. Depois, davam uma malga de caldo a cada um e metiam-nos na cama. Quando os pais chegavam, preocupados com os filhos, sentiam-se felizes e gratos, por saberem que os vizinhos tinham cuidado deles.
Na véspera do Natal, o casal Guilherme não costumava sair para longe, a fim de poder passar a Consoada com os filhos. Mas, naquele ano de 1931, os temporais e nevões não lhe permitiram fazer os seus negócios de Natal atempadamente. Porém, o dia 24 de Dezembro surgiu de bom tempo, propício para a viagem até terras do Paiva, onde iriam vender certos produtos que só na quadra do Natal conseguiam vender e trazer outros de volta que, normalmente, as gentes generosas do vale do Paiva lhes ofereciam, nesta época do ano. Carregadas as mulas, lá foram, serra fora, até Parada, Cabril e outras terras da zona.
Só que, a meio da tarde, o mau tempo voltou e em breve a serra começou a cobrir-se de branco. Retomada a viagem de regresso e deixadas para trás as terras ribeirinhas, chegaram às Portas de Montemuro já com muita neve. O vento e o granizo sacudiam os seus corpos gelados e na escuridão da noite, que entretanto caíra, mal conseguiam atinar com o caminho que os devia conduzir à Gralheira, ao seu lar, onde cinco crianças os esperavam, aflitas e ansiosas, naquela noite de Natal.
Mas os vizinhos não os deixaram sós. Levaram-nos para sua casa, sentaram-nos à volta da lareira e foram-lhes dando algumas iguarias, que só naquela noite se comiam. Na lareira havia alguns "mezelos" para as crianças se sentarem. Como não chegavam para todas, a rapariga da casa disse para os hóspedes:
"-Alguns de vós têm que se sentar no chão, porque o meu irmão traz umas calças novas e não pode sujá-las," ao que um deles respondeu:
"Eu também tenho um remendo novo no joelho das calças; também não me posso sentar no chão."
Chamavam "mezelos" a um pedaço de madeira que tiravam das cambas das rodas dos carros, em forma de meia lua e que serviam para as crianças se sentarem à lareira.
Mas, apesar de bem acolhidos e alimentados, a ausência dos pais, a incerteza do que lhes poderia acontecer naquela noite de tempestade, atormentava-os. Depois, esperavam também que os pais lhes trouxessem algumas coisas, como pinhões, figos e outras guloseimas, que lhes costumavam trazer e que cá não tinham.
E foi no meio desta ansiedade que ouviram o tropel das mulas no caminho, embora abafado pela neve que cobria o lajedo. Soltaram um grito de alegria e correram à rua a abraçar e beijar os pais, também eles doidos de contentamento. Os vizinhos, preocupados com a sua ausência a horas tão tardias, foram também manifestar-lhes a sua ansiedade e agora alegria, por os terem de volta. Como já era tarde para acenderem a lareira e fazerem a ceia da consoada, os vizinhos convidaram-nos a comer e a passarem aquela noite com eles.
Do alforge das mulas saíram castanhas, pinhões e figos, distribuídos agora por sete crianças, doidas de felicidade. Não pensavam em prendas no sapatinho, coisa que desconheciam e também porque nem as casas tinham chaminés, nem elas tinham sapatos, apenas os tamancos que julgavam não servirem para essas coisas.
Assim, passaram aquela noite de Natal, talvez a mais feliz. O casal Pedro e Ludovina, pelo bem que fizeram; Guilherme e Maria, agradecidos por terem tão bons vizinhos e as crianças, por terem passado aquela noite juntas.
Gralheira, 27 de Novembro de 2007
Carlos de Oliveira Silvestre
"ECOS DA GRALHEIRA" Jornal Miradouro Nº 1623 de 21 de Dezembro de 2007
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