A SERRA DE MONTEMURO E OS PARQUES ÉOLICOS
Quando Amorim Girão, nos princípios do século passado, escreveu o livro intitulado “Montemuro a Serra mais desconhecida de Portugal”, estava longe de imaginar que, algumas décadas depois, esta mesma serra viria a ter o movimento que hoje tem e a tornar-se no maior parque eólico do País, e porque não da Península Ibérica.
Nos anos que este consagrado escritor percorreu a serra de lés a lés, em busca de dados e elementos para o seu livro, a serra era mesmo assim, desconhecida das gentes dos grandes centros urbanos, que por falta de meios de comunicação e transportes, não conseguiam chegar até às suas cumeadas altaneiras. Apenas as populações das aldeias serranas, situadas nas vertentes da serra, subiam até aos seus tronos, cavando e lavrando a terra que lhes daria o centeio para o fabrico da broa, base da sua quase auto-suficiência alimentar.
Por ali pastoreavam também vacas e rebanhos, quando o gelo e a neve não cobriam o seu dorso enrugado, com o manto alvinitente. A Serra animava-se quando o fulgor do sol inundava de calor e luz todo o maciço Montemurano. Rapazes e raparigas, pastores de vacas e rebanhos, cantavam e dançavam ao som de realejo ou flauta. Assim, aqui e além, nos sítios mais recônditos da Serra, podiam ver-se terreiros bem coçados dos bailaricos de então.
Dos fins de Junho a meados de Agosto, a serra animava-se também com a chegada dos rebanhos da transumância, vindos dos lados da Serra da Estrela. Meia dúzia de rebanhos, com cerca de 2000 cabeças de gado cada, oito pastores e uma dúzia de cães, davam vida e alegria à altaneira Serra de Montemuro.
Pelo que acabo de descrever a Serra seria desconhecida e ignorada das gentes das grandes cidades, mas muito viva e animada, durante séculos, pelas pessoas que dela viviam.
Mas, o progresso, esse monstro que transpõe montanhas e serras, também chegou ao Montemuro. Primeiro, foi a abertura da estrada 321 a ligar Cinfães a Castro Daire. Devassaram o seu reino e rasgaram as suas entranhas, com máquinas de alta potência. Aterrorizaram aves e raposas, lobos e coelhos e os grilos calaram a sua sinfonia e refugiaram-se nos buracos, cheios de pavor, enquanto não se habituaram ao roncar de máquinas e automóveis. Surgiram depois as estradas municipais a trazerem desenvolvimento e progresso a todas as aldeias isoladas do Montemuro. Mas também levaram a gente nova para o estrangeiro e para as grandes cidades, e a Serra começou a ficar triste e só. Acabaram os rebanhos e pastores; terminou o cultivo do centeio e o chiar dos carros de vacas pelos caminhos tortuosos das encostas da Serra; deixou de ouvir-se o cantar de rapazes e raparigas e a Serra mergulhou num silêncio profundo, sepulcral, só quebrado aqui e além, por uma avezita solitária ou pelo sussurro encantador de um regato de água cristalina.
Quando parecia que tudo estava condenado ao silêncio e à solidão, eis que surgem os projectos dos parques eólicos. Uns a favor, outros contra. E difícil o consenso. Mas, como os terrenos são particulares, cada um faz deles o que quer. Poucos recusam o arrendamento. Habituados a não tirarem dali qualquer rendimento, a não ser uns magros alqueires de centeio à custa de muito trabalho e não nos dias de hoje, foi fácil convencer os proprietários, quando lhes ofereceram 500 (2500€) ou 1000 (5000€) contos de renda, conforme o tamanho do terreno. Duas empresas se instalaram no Montemuro. A Eólica da Cabreira, que construiu o parque do Perneval e do Talegre e a Enernova, que montou o de S. Pedro-Tendais e da Gralheira. Com certeza outros surgirão ainda.
Como disse, há quem seja contra, mas a grande maioria da gente da Gralheira é a favor. São milhares de contos que recebem e não se vislumbra que dali venha qualquer agressão ambiental. Todos precisamos de energia eléctrica e esta tem de ser produzida de alguma forma. Nuclear, térmica, hidráulica ou eólica. De todas, esta é a que menos polui e menos impacto ambiental tem. Os aerogeradores, no seu movimento de rotação, parecem lenços a acenar e ainda fazem lembrar os velhos moinhos de vento, tão usados antigamente, sobretudo na região centro do País. Os parques eólicos trouxeram vida e alegria ao Montemuro, a esta Serra que estava morta, mergulhada no silêncio. E certo que as estradas levam muita gente à Serra que por vezes deixam lixo. Mas também, quantas pessoas idosas que há muito se despediram do Alto da Serra, por falta de forças para lá chegarem, têm agora a possibilidade de a visitarem de automóvel. E comovente observar a maneira como olham em redor, procurando abranger, com a vista já cansada, o mais longe possível, em busca de sítios e lugares que lhes recordem o tempo da mocidade já tão distante. Os penedos onde subiram e se sentaram e que foram testemunhas das primeiras promessas de amor; os terreiros dos bailaricos, agora entregues ao matagal; e as brincadeiras do jogo do nicho e do pião, são coisas que recordam num misto de saudade e tristeza.
Se os parques eólicos não existissem, nunca mais lá voltariam.
Gralheira, 26 de Janeiro de 2004 Carlos de Oliveira Silvestre
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