OS CARVOEIROS
Antes de existir a electricidade, o petróleo e o gás, o carvão e a lenha eram quase as únicas fontes de energia e calor que alimentavam e aqueciam as habitações humanas. Durante séculos, milénios, assim foi e pode dizer-se que só no tempo de nossos pais, as coisas se alteraram e, em muitas localidades, só nos nossos dias.
Estão neste caso todas as povoações serranas do Montemuro e de muitas outras, perdidas em locais remotos, nas serras do nosso País. O carvão e a lenha aqueciam as lareiras e faziam ferver as panelas, de ferro, de três pernas, na confecção das refeições. Havia o carvão mineral, a hulha, extraído do subsolo, e o vegetal, saído da urze. Porque o mineral era pouco usado por estas bandas, vamos falar apenas do vegetal, que "medra" nas encostas e planaltos do Montemuro.
Existem duas espécies de urze. Uma de flor cinzenta, de ramos mais compridos e de raízes longas e pouco carnudas. Outra, de flor roxa, mais rasteira e de raiz em forma de nabo. Era desta urze que extraíam o carvão e da qual, os pequenos pastores, faziam bolas para o jogo do nicho, enquanto pastoreavam o gado na serra. Era uma espécie de hóquei em campo.
Para extraírem o carvão da urze - urgueira ou torga - os homens das povoações serranas muniam-se de um picabeque - alvião - para arrancar a urze e cortar-lhe os ramos, aproveitando apenas a raiz. Depois fazim uma grande cova e aí depositavam as raízes arrancadas, sobre alguma lenha seca. Pegavam-lhes o fogo e deixavam arder até que ficasse tudo em brasa. Depois iam tapando, com pedras e torrões, deixando apenas uma pequena abertura, para que a combustão se fizesse lentamente. Ao fim de três, quatro dias, a cova estava totalmente apagada e o carvão pronto a ser retirado.
Os homens que se dedicavam a esta tarefa, eram os chamados carvoeiros da extracção, os que primeiro lidavam com o carvão. Quando todos acendiam as suas covas, a serra vomitava fumo por todo o lado, fazendo lembrar as chaminés das fábricas, nas zonas industriais das grandes cidades. A primeira fase estava concluída, a transformação da raiz da torga em carvão. Depois vinha a segunda fase, a do transporte até à cidade mais próxima, Lamego. Disso se encarregavam os carvoeiros de Penude, com as suas mulas, machos e jumentos.
Depois de comprarem o carvão, metiam-no em grandes sacas de serapilheira, colocavam três no dorso de cada burro e com meia saca às costas, lá iam das Levadas ou do Perneval até Lamego, com paragem na Gralheira, para descansar e comerem. Em dias de bom tempo tudo corria bem. Os cerca de 40 quilómetros, que separavam o Perneval de Lamego, eram percorridos com descontracção e tranquilidade. Mas, quando, no Inverno, eram surpreendidos por terríveis tempestades de chuva, neve e nevoeiro, a situação tornava-se crítica e dramática. Quantas vezes se perderam ao cair da noite, sem conseguirem enxergar o invisível carreiro que os devia conduzir até à povoação da Gralheira. Na escuridão da noite, apenas os relâmpagos lhes davam alguma claridade, em alternância com o ribombar dos trovões e o uivar dos lobos. Nessas circunstâncias, viam-se obrigados a soltar os burritos e eram eles, com o seu instinto mais apurado, que lhes ensinavam o caminho e os traziam até à Gralheira.
Lembro, a propósito, de uma noite de temporal, ter batido à porta da nossa humilde casa, um carvoeiro com o burrito carregado de carvão. As fortes pancadas traduziam bem o que lhe ia na alma. Era em Fevereiro, por alturas do Carnaval. Tínhamos cozido a fornada e à noite havia serão. Estavam presentes todos os familiares, vizinhos e a rapaziada da aldeia, que acorria a todos os serões, onde houvesse moças casadoiras. Quando o homem bateu à porta, ainda se pensou que fossem alguns mascarados, que costumavam visitar as casas onde havia serão. Mas o homem voltou a bater e a pedir que lhe dessem colheita. Então a porta abriu-se e o carvoeiro foi acolhido com a solicitude e carinho que era possível.
O homem, de lágrimas nos olhos, contou a sua triste viagem. Perdera-se na serra e caminhara à sorte, sem saber para onde. Quando viu a luz, da nossa candeia, através da janela, nem queria acreditar que estava salvo. O burrito foi libertado da carga e metido no curral, com feno na manjedoira. Ao homem foram fornecidas roupas enxutas para se mudar e as suas postas a secar, dentro do forno ainda quente.
Depois de comer uma sopa aquecida e um pedaço de bola, deram-lhe umas mantas, para dormir sobre o feno, no palheiro ao lado, por não termos camas disponíveis. No dia seguinte, comeu mais uma malga de caldo e retomou a viagem, deixando, como recompensa, palavras de gratidão e lágrimas de reconhecimento! Muitos outros tiveram igual sorte.
O último carvoeiro a percorrer a serra foi o tio Joaquim Maravilhas, de Penude, que por aqui andou enquanto as forças lho permitiram. Jumenta Ruça à frente, carregada com três sacas que quase lhe encobriam as orelhas, e Joaquim Maravilhas atrás, com meia saca às costas, tamancos ferrados a guilhos nos pés, que faziam grande ruído no lajedo do caminho, em alternância ou sincronia com as ferraduras da Ruça.
Durante muitos anos, esta imagem de carvoeiros e almocreves entrou no quotidiano da gente da Gralheira. Homens e burros faziam parte da paisagem serrana e era frequente ver-se a sua silhueta projectada no horizonte, nas cumeadas e cerros do Montemuro. Eram figuras típicas de toda a serra e muito carvão transportaram para Lamego. Muitas vezes sentiam fome de doer o estômago e então tiravam a merenda aos pequenos pastores, que não ia além de um pedaço de pão.
Estes, para se vingarem, colocavam armadilhas no carreiro, abrindo covas com cerca de 40 centímetros de profundidade e cobertas com ramos de giesta ou urze e uma ligeira camada de terra para disfarçar. Colocavam-se à distância, para ver o resultado da sua armadilha. Os burritos, ao pisar a cova, caíam e o carvoeiro tinha que descarregar o burro, para que se pudesse levantar, enquanto soltava... um rosário de pragas e maldições.
O progresso levou consigo pastores, carvoeiros e almocreves e até o carreiro desapareceu, na densidade do matagal.
Gralheira, 01 de Outubro de 2006.
Carlos de Oliveira Silvestre
"ECOS DE MONTEMURO" Jornal Miradouro Nº 1582 de 08 de Dezembro de 2006
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