TRANSUMÂNCIA-REBANHOS E PASTORES
Alguém terá prestado relevantes serviços ao Rei e à Pátria e como recompensa pedira apenas, uma passagem livre do interior da Beira Alta, para a Serra de Montemuro, a fim de, no verão, conduzir os rebanhos até às pastagens, viçosas e abundantes, desta Serra maravilhosa. Assim deve ter acontecido durante séculos.
Em dia combinado, normalmente num Domingo, ao fim da missa, no adro da Igreja, aí compareciam os homens interessados no arrendamento do monte. Este ia a leilão e quem mais desse é que o arrendava. O arrendatário comprometia-se também a pagar uns garrafões de vinho para os homens que, em Abril, compunham os caminhos. O dinheiro do arrendamento era distribuído conforme as terras que cada um tinha na serra. Arrendavam apenas a parte mais alta, ficando a restante para os rebanhos da Gralheira.
Arrendado o monte, o arrendatário procurava reunir na sua região, um rebanho com cerca de duas mil cabeças de gado e oito pastores, senda um deles o 'MOIRAL" (chefe) e outro o cozinheiro. Acompanhavam o rebanho cerca de quinze cães, para o defenderem dos lobos. Chegavam em fins de Junho, normalmente em dia de S.Pedro, que era dia Santo e dia de grande festança no Nicho do Rossão, onde se juntava muita gente à espera dos rebanhos. Digo rebanhos, porque eram diversos os que subiam até aos planaltos do Montemuro. Tal como a Gralheira, também os outros povos da serra arrendavam os seus montes. Os rebanhos chegavam enfeitados, com fitas de lã multicores e com grandes chocalhos, ao pescoço dos bodes. No Nicho do Rossão havia tocatas, bailes e às vezes pancadaria.
Mas, não era só pelo dinheiro que os povos da serra arrendavam o monte. Era, sobretudo, para estrumarem os terrenos lá do alto, a que chamavam alqueves, já que era muito difícil levar para ali estrume das povoações, porque ficavam distantes. Seis sortes no monte davam direito a uma noite do rebanho. Para a folha do lado poente, tinham de dar cinquenta e duas noites e para o lado nascente, cinquenta. Era a serra dividida ao meio, de alto a baixo, no sentido sul-norte.
Isto, no que dizia respeito à Gralheira. Assim, os pastores tinham que permanecer, com o rebanho na serra, durante cerca de cinquenta dias desde os fins de Junho a meados de Agosto. Quando o tempo estava fresco ou de nevoeiro, "arrodeavam" também nos alqueves à tarde. Dois rodeios: correspondiam a uma noite. Se fossem embora sem darem as noites todas, tinham de pagar cem escudos por cada noite a menos. Começavam a estrumar os alqueves mais do alto e, avisado o dono do terreno, este, a meio da tarde, subia a serra com a ceia para os pastores, que consistia, normalmente, em batatas ou arroz, bacalhau ou carne de porco, hortaliça, feijão, azeite, uma broa e um garrafão de vinho. Quando o dono do alqueve chegava com os comestíveis, já o cozinheiro o esperava de ferradas cheias de água e a caldeira assente em três pedras, encostada a um penedo. Quando os outros pastores chegavam à noite, com o rebanho, já a caldeirada estava pronta. Acomodado o rebanho no alqueve, chegava a hora da ceia. Colocados em redor da caldeira, o "MOIRAL" dava três pancadas com a colher de pau na beira da caldeira, sinal de que podiam começar a comer. Era um ritual severo, a que todos obedeciam. Era também o Moiral que distribuía as postas de bacalhau ou carne e enchia o copo de vinho, que andava de mão em mão. Terminada a ceia, os pastores deitavam-se, dois a dois, à volta do rebanho, embrulhados nas grossas mantas da serra, e o dono do alqueve tomava conta do rebanho. Na manhã seguinte tiravam o leite às cabras para o pequeno almoço e também para os cães, que lhes era servido em covas abertas na terra. Depois o rebanho voltava á pastagem e a vida na serra repetia-se assim, durante cerca de cinquenta dias, ate voltarem a enfeitar os bodes para a viagem de regresso, às orígens. Hoje, já só um pequeno rebanho vem para a serra, mas sem os rituais de outros tempos e sem alqueves.
Gralheira, 14 de Agosto de 1999 Carlos de Oliveira Silvestre
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