O TIRA DENTES
Perdida nos contrafortes do Montemuro, afastada dos grandes centros urbanos, longe de médicos e hospitais, sem vias de comunicação e transportes, a gente da Gralheira viveu séculos de isolamento, remetida ao seu meio, a este mundo que era só seu. As pessoas alimentavam-se do que a terra dava e vestiam-se de roupas e calçado de fabrico artesanal. Quando a doença lhes batia a porta, raramente recorriam ao médico, que estava longe e cobrava caro, para as suas paupérrimas posses. Só recorriam a ele, quando a doença era muito grave e em tal estado de evolução, que, muitas vezes, o médico nada podia fazer, além de confirmar o óbito. Valiam-se das papas de linhaça, das ventosas, das pontas do fogo, da mostarda, dos emplastros, dos escalda-pés, das benzeduras e das preces a Deus e à Virgem Maria.
Quando se cortavam, para fazer parar a sangria, aplicavam teias de aranha ou casca de piorna, que, normalmente, eram eficazes. E, se nas diversas doenças não recorriam ao médico, também o não faziam quando os dentes doíam. Houve sempre na aldeia um tira dentes, um homem que fazia esse trabalho gratuitamente.
Já não de minha lembrança era o velho Sousa quem desempenhava as funções de dentista. Munido de uma chave própria, com a extremidade em forma de gancho, era com essa ferramenta que ele extraia os dentes, a ferro frio, sem qualquer anestesia, apesar de lhe faltarem quatro dedo numa das mãos. Contam ainda as pessoas mais idosas que, quando o Sousa apontava a mão deficiente aos cães, estes fugiam espavoridos. Era também este homem que fazia leilão das cabeças de porco e salpicões, no gordo de carnaval, no adro da Igreja, ao fim da missa. Segundo dizem, era homem muito brincalhão e divertido;
quando leiloava as cabeças de porco, batia com elas nas costas das pessoas que estavam em redor. O produto deste leilão revertia em favor de Santo António, já que era a este Santo, que recorriam em momentos de aflição, para que lhes protegesse os gados, tanto das doenças como dos lobos.
Quando o Sr. Sousa faleceu, ou já não pôde executar as tarefas de dentista, passou a chave para o Sr. Pinto, homem já da minha lembrança. Normalmente, as pessoas só recorriam ao tira dentes quando já não aguentavam as dores, ou estas eram superiores ao receio da extracção.
No tempo da minha mocidade assisti, por várias vezes, a cenas desta natureza. As pessoas chegavam, pediam ao Sr. Pinto para lhes tirar o dente, porque lhes doía muito. Este mandava-as sentar num banco, voltar a cabeça para trás, que ele metia entre as suas pernas. Enquanto o paciente ficava ali, de boca aberta, voltada para cima, o dentista ia procurando introduzir o gancho da chave na raiz do dente, ao mesmo tempo que ia dizendo que aquele dente não se podia tirar, para dessa maneira distrair o paciente. Quando pressentia que a chave já estava bem presa na base do dente, dava um puxão e este ou arrancava ou partia, enquanto que o doente soltava um grito de dor, libertava-se do seu algoz e muitas vezes fugia desesperado, sem dizer mais palavra, enquanto o Sr. Pinto ficava com o dente na mão, a chamar pelo paciente para lhe desinfectar a boca com um cálice de aguardente.
Era assim, o tira dentes fazia o trabalho gratuitamente e ainda oferecia a aguardente.
Quando o Sr. Pinto deixou de poder executar esta tarefa, a chave passou para o meu tio e padrinho Sr. Carlos Pinto Silvestre que foi o último tira dentes da Gralheira, cuja actividade terminou por volta de 1970, embora muitas pessoas, nessa altura já recorressem aos médicos dentistas.
Resta acrescentar que foram centenas ou milhares as pessoas que, ao longo dos séculos, passaram por esses tira dentes e não há memória de que alguém tenha morrido com infecções provocadas por essas extracções a ferro frio.
Gralheira, 9 de MAIO de 2000 Carlos de Oliveira Silvestre
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