Sentado no alto do Outeiro do Mouço, vou contemplando a minha Gralheira, ali, em frente, bonita, airosa, mais crescida, com prédios novos a invadir campos e cabeços. De repente, a minha imaginação recua no tempo e deixo desfilar na memória as mais belas imagens da minha infância e mocidade, já tão distantes. Parece que estou a ver aquela aldeia cinzenta, de paredes graníticas enegrecidas e gastas pelo tempo, com coberturas de colmo.
Apenas meia dúzia de casas com telha, a perderem-se naquele universo de colmados escuros, a confundir-se com a paisagem envolvente. A escuridão da noite só era quebrada pela luz mortiça das candeias a petróleo, que, do interior das casas, espreitava por janelas e postigos e pelo luar, em noites de Lua Cheia. Apesar das ruas lamacentas e desniveladas, os rapazes faziam arruadas, a tocar e a cantar e serenatas às moças casadoiras. Onde se cozia a fornada, a casa estava quente e à noite havia serão. Nele participavam os familiares, vizinhos, amigos e toda a rapaziada. As mulheres fiavam linho e lã, faziam camisolas e meias, enquanto os homens se entretinham com o jogo das cartas. Às vezes contavam histórias ou cantavam em coro até à meia noite, altura em que acabava o serão. No final, havia bolas - grossas e delgadas - feitas a propósito para serem consumidas no fim do serão.
Muita coisa mudou, não só no aspecto físico da povoação e da paisagem, mas também nas tradições, hábitos e costumes. Nos casamentos, quando os noivos se preparavam para o matrimónio, o padre lia os banhos na Missa, de três domingos seguidos. Os noivos, para não se sentirem constrangidos, iam à Missa à freguesia vizinha, à Panchorra. De harmonia com o estipulado, o pagamento ao padre, por ler os banhos, era feito com uma galinha.
Depois de cada casamento, mais uma ave habitava a capoeira do Sr. Abade. No dia do casamento, o noivo não esperava pela noiva na Igreja. Saíam ambos de casa dela, lado a lado, seguidos de todo o cortejo nupcial e, às vezes, com um grupo de raparigas da acção católica a entoar cânticos religiosos até à Igreja. Não havia prendas, a não ser de algum convidado que viesse de fora. Os da terra, apenas contribuíam com um carneiro, cabra, ovelha ou galo, para a jantarada. Às vezes, as rezes abatidas eram tantas, que até se esqueciam de algumas, como aconteceu num casamento em que, por esquecimento, ficou um carneiro dependurado na loja da residência paroquial e que só foi encontrado dias depois, quando o padre já não suportava o mau cheiro em casa. Não havia restaurantes e, por isso, as bodas eram feitas em casa e servidas em salas amplas, para que todos pudessem ter lugar à mesa. As noivas não iam de branco. Normalmente, vestiam fato azul, cinzento ou verde.
Os cortejos nupciais faziam-se aos pares. Cada cavalheiro teria que arranjar o seu par e tanto o noivo como os restantes eram portadores de um grande guarda-chuva, para protegerem a sua dama, tanto do sol como do mau tempo. A partir do fim da década de quarenta, passaram então algumas noivas a ir de branco, mas só se o merecessem, porque se houvesse conhecimento da falta de virgindade, já iam à capucha, como era costume dizer-se. Já não havia boda nem convidados; apenas os padrinhos e familiares em primeiro grau.
Depois de casados, como não havia prendas, tinham que "começar a vida do nada". Os pais, quando podiam, lá lhes davam duas panelas de ferro, de três pernas, uma prateira, dois pratos, algumas colheres de folha e garfos de ferro, ferrugentos, com a marca do "Pojeira" de Cutelo, para terem onde cozinhar e comer. Umas mantas e lençóis para se cobrirem e um colchão, muitas vezes já remendado, cheio com palha de centeio. A cama faziam-na de uns paus de amieiro, ainda verdes, acabadinhos de cortar, para não ganharem percevejos. Se encontravam uma casita para morar e umas terras para cultivarem a meias, já se davam por felizes no seu novo lar. A casa era simples. Além da lareira e do forno, indispensáveis em qualquer cozinha antiga, havia um armário tosco, onde guardavam a louça e talheres, sempre ao alcance da mulher. Do lado do homem, a mesa de descer, onde guardavam a broa e onde comiam. Havia ainda o caneco da água, em madeira, a cama para dormirem, algumas caixas e a salgadeira, quando não tinham despensa. À medida que a família ia crescendo, assim aumentava o número de camas na cozinha, quando não tinham outro, compartimento. Casas de banho... bom, isso era nos campos ou em algum quelho próximo. Para as necessidades mais urgentes, sobretudo durante a noite, havia os penicos, de barro e de esmalte. Quando partiam alguma peça de louça ou penico de barro, não os deitavam fora. Havia o "compostor" de louça para a consertar, como o "Pojeira" de Cutelo. Furava o barro com uma broca, accionada por uma bomba manual e aplicava-lhe uns gatos. Certo dia, estava o "Pojeira" a tentar consertar um penico de barro, mas como já tinha bebido uns copitos, não o conseguia e então "dizia que o penico estava empenado". Nesses recuados tempos, cada casal tinha muitos filhos, raramente menos de seis e alguns com 12 e 13. Como não há via emigração, a não ser alguns para o Brasil, a Gralheira tinha mais de 400 pessoas, enquanto hoje anda à volta das 170, residentes permanentes. Dantes a vida era dura porque as pessoas viviam apenas do que a terra produzia e quando o ano agrícola era mau, havia fome, como aconteceu nos anos da segunda grande guerra mundial. Mas havia solidariedade e as pessoas ajudavam-se mutuamente, mesmo entre os jovens pastores, com 11 e 12 anos, que no Montemuro guardavam os seus rebanhos. Uma adolescente de 12 anos sabendo que as suas companheiras de pastoreio não tinham pão, ela que o tinha, enchia a cesta de pão, para repartir com elas.
Hoje, aos mais novos, pode parecer-lhes que "estou a pintar" este quadro demasiado negro, mas os mais idosos sabem que era assim, E se falo nestas coisas, é para que a gente nova fique a conhecer melhor os sacrifícios que seus pais e avós tiveram de fazer para comerem um pedaço de pão. Pão bem duro, era o chamado "pão que o diabo amassou". A vida não foi sempre o mar de rosas que hoje é e de que tantos ainda se queixam.
Desde então, muita coisa mudou para melhor, nas condições de vida, em termos financeiros. O progresso, esse monstro que transpõe serras e montanhas, chegou às aldeias mais recônditas e isoladas, como a nossa Gralheira. Mas quantas coisas belas se não perderam nas ondas do progresso, na voragem do tempo? As pessoas são a coisa mais importante que uma terra pode ter, mas a Gralheira vê a sua gente sair, rumo à Suíça, ficando a aldeia com uma população envelhecida e desprotegida.
A política dos governantes é concentrar a população nas grandes cidades do litoral e abandonar as terras do interior ao seu destino, à morte. O interior é selva, é terra de ninguém. Fecham-se escolas, hospitais, centros de saúde, maternidades, enfim, o abandono total. Muitas aldeias já morreram e em breve a Gralheira, e outras, terão o mesmo destino.
Que saudades eu tenho da minha aldeia coberta de colmo!
Sentado à beira da piscina
Vou lembrando doces recordações
A bailar na água cristalina
Vão fugindo as minhas ilusões.
Meu coração entristecido já não canta
Já se foi para longe a felicidade
A tristeza mais profunda se levanta
Em remoinhos de amargura e saudade.
Gralheira, 24 de Janeiro de 2007
Carlos de Oliveira Silvestre
"Ecos da Gralheira", Jornal “Miradouro” Nº 1596 e 1597 de 16 e 23 de Março de 2007
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